Hannelore Paseka, uma vida sempre em movimento
Hannelore Paseka nasceu no vagão de um trem do correio da então Tchecoslováquia, em ponto indeterminado entre Pilsen e Nepomuk. O momento - em meio à deportação de sua mãe da ex-Tchecoslováquia - e o lugar marcariam o resto de sua vida. Para falar sobre sua infância na Alemanha, o desejo de viajar pelo mundo e o grande amor de sua vida, Hannelore nos recebeu na sua casa em Madrid. Uma história real e nostálgica.
Por: Pepa Garcia
Publicado: Setembro 14, 2021
O apito do comboio parece empurrar a coluna de fumo que fica para trás, turva, resistindo a sair da estação de Brno. Ottilie Paseková, sentada à janela de velho trem do Correio da então Tchecoslováquia, olha com misto de tristeza e medo a paisagem em movimento. Desliza suavemente a mão sobre uma barriga que está arredondada há nove meses. Ela foi forçada a deixar o que foi sua cidade por quase 27 anos. Fecha os olhos. Prefere não buscar culpados – a sua expulsão do país é consequência de nova ordem mundial... O fim da Segunda Guerra Mundial precipitou série de medidas e rejeições de tudo o que se identificava com a Alemanha e, por coincidência, sua família procede da região dos Sudetos. No vagão que ocupa, ela observa pessoas de todas as idades e condições sociais. Mal se ouve um murmúrio de vez em quando, ou a voz da mãe a repreender o filho inquieto. A resignação pesa na atmosfera.
É abril de 1945 e o processo de mudança na vida de Ottilie apenas começou. O balanço do trem, habitualmente relaxante, já não é assim. As contrações não demoram a chegar, uma após outra, cada vez mais aceleradas. Inspire, expire, inspire... o parto é iminente. Alguns vêm em seu auxílio, e a velha máquina ferroviária para de assobiar. O trem diminui a velocidade e para em algum lugar entre Pilsen e Nepomuk. Tudo avança. A água quente da caldeira é o único desinfetante na improvisada sala de parto. Em poucos minutos, uma criatura rosada abre os braços e chora com vontade. Sua mãe também chora, mas por outros motivos. Aqui começa a aventura da vida de Hannelore Paseka - Hanni, convidada muito especial do blog DestinoTchequia.
Essa senhora, que mostra carácter e entusiasmo em partes iguais, confessa sentir que o seu nascimento no vagão do trem marcou a sua existência, a sua necessidade de estar sempre em movimento, a vontade de conhecer outros destinos e culturas. Otimismo e tenacidade, mesmo nas circunstâncias mais adversas, têm sido a constante no caminho que ela vem traçando para si, de acordo com sua consciência e seu coração.
A história de Hannelore Paseka foi publicada há alguns anos pela revista tcheca ČD pro Vas.
Uma história de superação
Desde aquele dia, 76 anos transcorreram. Aquele bebê se tornou uma mulher madura que olha de esgueira para trás, mas continua com determinação. Sem medo. Hannelore Paseka Berthold nos recebe na sua casa em Madrid e conta sua história de maneira ordenada, tentando não sair de caminho pontilhado de inquietudes, aprendizados e curiosidades, tingidas de certo realismo mágico. Por meio de pequenos flashes, aos poucos ela reconstrói sua longa trajetória de vida, antes mesmo de abrir os olhos pela primeira vez. Hanni repete história contada por sua mãe. Ela retorna no tempo para narrar momento quando seus pais se conheceram em Praga e sua mãe, apaixonada, não hesitou em acompanhar aquele jovem atraente a Zagreb, aonde ele morou e estudou. “Eles eram muito jovens e se apaixonaram”, acrescenta Hanni, com sorriso cúmplice.
Enquanto o pai de Hanni era croata, sua mãe vinha de família do norte da então Tchecoslováquia, com ascendência austríaca - mistura curiosa. A jovem Ottilie segue-o até à Croácia, mas quando regressa a Brno já estava grávida e a Segunda Guerra Mundial havia começado. Ela só queria visitar as duas tias que a criaram - ela era órfã -, mas sua decisão não poderia ter sido mais infeliz. Foi interceptada, deportada e obrigada a deixar o país em 22 de abril de 1945. Seu companheiro e futuro pai de Hanni, ao saber da deportação, tentou chegar a Brno, mas sua mãe já havia sido forçada a embarcar no trem. Tendo perdido todas as referências acerca de Ottilie, ele decidiu retornar ao seu país natal. Uma vez lá, não teve melhor sorte: foi acusado de espionagem e morreu após curta estadia na prisão.
Brno Skyline. © Jiri Kruzik
Uma nova vida na Alemanha
Hanni fica em silêncio por um momento. Olhe para fora. Em seu jardim, as árvores apontam para o céu enquanto afundam suas raízes na terra. Ela suspira e continua a história, a mesma que sua mãe, Ottilie, tantas vezes lhe contou na infância. Despojada dos seus bens, tendo como único pertence uma recém-nascida, ela continuou a viagem por trem com destino ao campo de refugiados em Nuremberg. Hanni não tem lembranças dessa fase, mas as tem do período quando ela e a mãe saíram de lá e se estabeleceram em Bamberg. Aqui, por milagre do destino, sua mãe chegou ao mesmo campo de refugiados aonde estavam as duas tias dela, também deportadas da então Tchecoslováquia. Unidas, as três começaram nova vida juntas. “Éramos uma família de quatro mulheres”, nos conta Hanni, com a firme convicção de que sua força tem muito a ver com ter crescido entre mulheres fortes e lutadoras.
Ela lembra da infância e adolescência, existência em condições humildes, mas, reconhece, com boa educação. Sua primeira viagem, com apenas 10 anos, a levaria à Dinamarca para tratamento de problemas respiratórios. Uma década depois, ao terminar os estudos de decoração de interiores, decidiu que era chegado o momento de alçar voo e descobrir outros lugares, desejo que há muito rondava seus pensamentos.
Hannelore com uma amiga no Estádio da Luz, em Lisboa, Portugal, na final (maio, 24, 2014) da Liga dos Campeões 2013-2014 entre Atlético de Madrid e Real Madri, sonho que seu marido não conseguiu concretizar. © H. Paseka
Madrid, sua segunda casa
O interesse pelo aperfeiçoamento de idiomas - hoje ela fala quatro deles -, levou Hanni à Inglaterra, Suíça e à Espanha. Depois de uma estada em Valência ela chega a Madrid, sua cidade há quase 50 anos, onde partilhou a vida com Jenaro Bascuas Álvarez, seu marido, com quem teve dois filhos, Carmen e Francisco.
Jenaro, o galego que lhe roubou o coração, domina a sala. De um grande retrato apoiado em cavalete, ele não perde nenhum detalhe da nossa conversa. Às vezes, parece nos observar e outras, parece que seu olhar se dirige para a pintura de sua esposa que, ao lado do piano, usa um lindo vestido de cetim rosa. Embora Jenaro tenha falecido há oito anos, Hanni o tem sempre na lembrança. Ela admite que continua a falar com ele –quem não o faria, depois de cinquenta anos de amor? Ela nos conta que ele foi grande profissional da informação em saúde, culto e educado, que trabalhou muito para dar vida confortável à família e que amava acima de tudo o time de futebol do seu coração, o Atlético de Madrid. Ela nos mostra as recordações que guarda de Jenaro, incluído o recorte de El Correo Gallego no qual Jenaro é lembrado com carinho.
Fábrica de cerveja em Plzeň (Pilsen).
Reconstruindo o passado
Jenaro ainda estava vivo quando Hanni se propôs reunir a história da família e até localizar o local exato de seu nascimento. Ele ficou surpreso, mas não lhe pareceu algo ruim - "como ele não gostava muito de viajar - embora tenhamos viajado meio mundo juntos -, não se opôs a que eu viajasse sozinha", diz ela, com sorriso cúmplice.
Após a morte de sua mãe em 1986, Hanni descobriu documentos que despertaram a sua curiosidade e a levaram a embarcar em jornada que a levaria à ainda Tchecoslováquia, para descobrir suas raízes. Lá, ela localizou a velha rua aonde sua mãe morava e alguns parentes com os quais não teve contato próximo devido à barreira do idioma - ela conhece apenas poucas palavras em tcheco. Em Zagreb, aonde viveu seu pai, ela teve igual sorte - encontrou uma prima com quem continua a se corresponder até os dias atuais.
Nepomuk. © Matěj Baťha / wikimedia
Laços invisíveis com Tchéquia
Hannelore carrega orgulhosamente o sobrenome de sua mãe, Paseka, e lamenta não ter aprendido a falar tcheco, pois isso tornaria mais fácil o contato com seus parentes maternos. Mesmo assim, ela reconhece que tem ligação especial com a República Tcheca (n.t.: estabelecida em 01 de janeiro de 1993), e se propôs a conhecer o território a fundo, o que é validado quando a ouvimos contar com paixão sobre os lugares que já conheceu, como Karlovy Vary, Mariánské Lázně e a região de Plzeň, com a sua cervejaria. Como só poderia ser, Hanni tem carinho especial por Nepomuk, cidade cujo nome aparece em sua certidão de nascimento - “Gostaria de ir todos os anos à República Tcheca para, aos poucos, conhecer todo o país e suas maravilhosas paisagens”.
“Adoro viajar sozinha e já viajei meio mundo, ressalta Henn, e sempre que posso incluo o trem como meio de transporte, porque tenho sentimento muito especial ao viajar nele. Agora estou buscando meios para viajar ao Alasca e dar uma volta nos trilhos de lá”, ela nos conta com entusiasmo, enquanto saboreamos bolo tcheco com sementes de papoula. A luz da tarde aos poucos de apaga, enquanto as palavras de Hanni preenchem todos os cantos da casa com memórias.
Tudo o que nos acontece na vida nos marca, de uma ou outra forma. Pode ser que o fato de ter nascido no vagão de um trem e em circunstâncias adversas, tenha feito de Hanni a mulher forte que é e sua ligação com trens tenha explicação metafísica.
Deixamos Hanni à sua porta, a nos acenar. Por instantes, A imagem nos lembrou despedida em uma estação de trem.