Capitulo 1 - Viva sua novela na República Tcheca (Vítejte)
Um jovem casal de amigos chega a Praga, na República Tcheca, inspirados por uma novela da TV. Carlos é secretamente apaixonado pela amiga Lara, e nutre esperanças de que o romantismo da cidade o ajude na conquista. Em meio às primeiras descobertas da cidade, os dois acabam se separando acidentalmente, e agora Carlos precisa partir em uma busca para reencontrar a companheira
Por: Luiz Fernando Destro
Publicado: Setembro 15, 2021
Carlos deu um suspiro e desafivelou o cinto de segurança. Olhou para o lado e viu o rosto de Lara contra a luz que vinha do lado de fora, através da janelinha do avião. Depois de quase vinte horas de viagem, finalmente tinham chegado, e lá fora estava Praga, a capital da República Tcheca.
Os amigos acharam estranho quando ele disse que iria para Praga. Alguns olharam torto, como quem diz: “mas vai fazer o que lá?”. Outros simplesmente não tinham ideia de onde ficava. Um conhecido, não muito brilhante, cravou que era nos Estados Unidos, esquina com a Islândia. Sem falar dos muitos que insistiam em chamar de Tchecoslováquia – mesmo que há quase trinta anos Eslováquia e Tchéquia tenham se separado...
Mas Lara sabia onde era Praga. E sabia da Tchéquia, dos antigos reinos, dos castelos, das pontes... Lara sabia que o país ficava no meio da Europa. E, mais que tudo, queria tanto conhecê-lo. Lara era simplesmente incrível. Com seu cabelo castanho claro e olhos cor de azeitona, tinha uma beleza própria que iluminava o ambiente. Não era o estilo espetacular de mulher, daquelas que param o trânsito. Porém possuía uma graça própria, difícil de explicar, mas deliciosa de compartilhar.
Sim, Carlos era apaixonado por Lara, desde que a conheceu, no ensino médio. Mas nunca ousou cruzar os limites da amizade, resignando-se à odiosa friend zone, carcereira de todas as paixões.
- Vamos?
Era Lara, levantando-se do assento diminuto da classe econômica, e procurando caminho no corredor entupido do avião.
Enquanto caminhavam pelo saguão do aeroporto Václav Havel, Lara tagarelava, como costumava fazer. Apesar de cansada, ela se divertia com as palavras que lia nas placas, tentando reproduzir o que ela pensava ser o som das diversas letras esquisitas. Carlos ouvia calado, fascinado por estar em um país estrangeiro pela primeira vez na vida.
- Temos que pegar as malas ali – Lara apontou um corredor com portas de abertura automática.
Ao contrário de Carlos, Lara já havia viajado ao exterior. Conhecia Argentina e Chile, e havia posto o pé no Paraguai quando cruzou a Ponte da Amizade. Com uma tia solteirona, fez uma excursão pela Europa havia uns anos, e conheceu Londres, Paris e Madri. Mas para ela, a República Tcheca também tinha um gosto de novidade, já que pela primeira vez ela estava liderando.
Tudo começou com uma novela. Depois de um longo tempo exibindo reprises, a TV Mundial finalmente lançou uma nova produção. Lara, uma entusiasta do gênero, logo quis começar a ver. Carlos, um entusiasta de Lara, quis acompanhar.
Os primeiros capítulos se passavam justamente em Praga. Como toda boa novela, fatos dramáticos criavam uma situação que, nos 120 capítulos seguintes, seria resolvida, até o inevitável final feliz. Mas em vez de mergulhar na trama, Lara ficou boquiaberta com o cenário – um sem-fim de casas, torres, palácios, jardins, ruelas.... além de vistas maravilhosas de um rio cortando uma cidade que parecia, a um só tempo, grande e acolhedora - e muito linda. Era Praga.
Nos dias seguintes, Lara ligava a TV não para ver Luan Calmon, o ator bonitão que encarnava o galã da novela, mas sim para admirar a cidade. Por uma semana, o encantamento foi crescendo até que... a trama voltou para o Brasil.
Carlos pegou as malas e colocou em um carrinho. Olhou ao redor, procurando a saída, mas Lara estava a sua frente – como quase sempre.
- É por ali, Carlos. Onde está escrito ‘východ’.
- Palavrinha estranha – disse Carlos.
- Bom, mas é melhor aprender. Essa pode ser útil.
Depois de uma semana grudada na tela, Lara ficou obcecada, e começou a ler cada vez mais sobre Praga e sobre a República Tcheca. E comentava com Carlos sobre suas descobertas. Aparentemente havia bastante informação disponível, porque Lara não parava de falar. E, de repente, termos como premislitas, Malá Strana, Rudolfinum e Masaryk começaram a povoar as conversas dos dois. Carlos ouvia fascinado. Às vezes, Carlos não entendia do que Lara falava. Mas só para estar com ela, valia a pena.
Um dia – era um domingo à tarde – Lara parou de enxugar a louça do almoço, virou-se para Carlos e disse:
- Por que a gente não vai a Praga?
E agora lá estavam eles, saindo da alfândega e oficialmente tocando o solo tcheco. O dia já estava acabando, e o sol de junho entrava oblíquo pelas paredes de vidro que separavam o saguão da rua. Lara apertou o olho, tentando ler as plaquinhas dos inúmeros transferistas amontoados em frente a saída.
- Goveia? – Lara pareceu revoltada.
Carlos olhou e viu um rapaz apertado em um terno preto, segurando na altura do peito uma placa com o escrito “Mrs Goveia”. E então entendeu a irritação de Lara, porque o sobrenome dela é Gouveia, com U. E ela não é Mrs –abreviatura usada para mulheres casadas.
- É Go Véia – Carlos quis fazer uma brincadeira, mas logo percebeu que foi um tiro no pé. Nenhuma mulher – muito menos Lara - gostaria de ser chamada de ‘Véia’.
O rapaz no terno preto pulou ao perceber que seus clientes haviam chegado, e apressou-se em pegar o carrinho com as malas e dar as boas-vindas.
- Vítejte, vítejte – ele repetia, na esperança de que entendessem o que as palavras significavam.
Alguns minutos depois, Carlos e Lara estavam no banco de trás de um carro preto bastante confortável. O sol começava a tocar a linha do horizonte, jorrando uma luz alaranjada nos edifícios. Primeiro, não eram muitos, mas logo começaram a surgir, junto com os trilhos do bonde no canteiro central. De repente a paisagem sumiu e foi substituída pela parede ladrilhada de um túnel.
O pensamento de Carlos voou. Voltou para a cozinha da casa de Lara, com ela em pé, pano de prato na mão, convidando Carlos para viajar a Praga. Ele disfarçou, mas o coração acelerou naquele dia e naquela hora. A simples oportunidade de estar com Lara por uma semana, só os dois, longe de tudo e de todos – especialmente de Álvaro, o irritante ex-namorado da amiga – parecia um sonho. Ou melhor, uma novela. Mas nessa novela, ele era o galã e Lara era sua...
Seu devaneio foi interrompido pelo motorista. Ele falava algo em uma língua que poderia ser inglês, e esticava o braço para a direita. Carlos entendeu que ele queria mostrar algo. E então a parede ladrilhada do túnel acabou, e pela janela do carro preto surgiu um rio. Atrás do rio, várias casas, igrejas e torres. E atrás delas, mais ao alto, uma imponente construção, esparramando-se em várias formas e cores.
- É o castelo de Praga! Como na novela! – Lara tinha a voz embargada de emoção.
Carlos olhou o castelo, com os últimos raios de sol sumindo por trás dele. Depois fixou o olhar no rosto de Lara, em seu largo sorriso, e murmurou para si mesmo:
- E esse é só o primeiro capítulo.
Já estava escuro quando finalmente chegaram ao hotel Royal Court – um edifício histórico convertido em hotel. A escolha havia sido de Lara, e Carlos temeu que ‘histórico’ significasse ‘velho’. Mas, para sua surpresa e alívio, o hotel era impecável.
Cumpridas as burocracias de check in, pegaram o elevador para o segundo andar e entraram no quarto 212. Por um segundo Carlos fantasiou um lamentável equívoco do hotel, que teria colocado uma cama de casal e não duas de solteiro. Mas, novamente, o hotel foi impecável, e uma mesinha de cabeceira separava os dois leitos.
Lara declarou a necessidade imediata de um banho, e Carlos gentilmente aquiesceu. Enquanto ouvia a água do chuveiro caindo, Carlos pensava na bizarra situação em que estava – dividindo um quarto com a mulher que amava, mas em camas separadas.
Carlos não lembra quem deu a ideia, mas ambos logo concordaram que dividir um quarto fazia sentido. Economizariam um bom dinheiro, e poderiam estar mais próximos para decidir o que fazer. E não seria a primeira vez que dividiam um quarto. Fizeram isso quando foram ao Beto Carrero World com a família de Lara. Na ocasião, porém, era um quarto triplo – a avó de Lara ficou com a cama da janela.
Lara saiu do banho, cabelo enrolado na toalha, os olhos verdes ainda mais luminosos.
- Sua vez – ela disse – eu te espero lá embaixo.
Um bom banho depois, Carlos desceu para o térreo, esperando encontrar Lara no lobby. Mas só encontrou uma senhora idosa que constantemente mexia os lábios, como se estivesse ruminando.
Carlos estava a ponto de falar com o recepcionista atrás do balcão de vidro, quando ouviu uma voz chamando.
- Carlos, aqui!
A cara de Lara aparecia através da porta de entrada do hotel.
- Isso aqui é lindo! Olha só! – Lara apontou para um edifício bem ao lado do hotel, com paredes em tom amarelado e diversos detalhes em um metal, que pela oxidação parecia verde. Bem na frente do prédio, acima da porta principal, um balcão com mais adornos em metal esverdeado e, acima dele, um mosaico com a imagem de uma mulher com algum tipo de toga.
- É a Casa Municipal – completou Lara – Lembra que apareceu na novela? Quando a Mariana Decker está fugindo?
Após a referência, Carlos lembrou do capítulo em questão, e do prédio que agora estava a sua frente. Dava para ver que era uma construção importante pelas luzes que o iluminavam e pela quantidade de turistas ao seu redor.
- Vamos, por ali – Lara puxou o braço de Carlos, como uma criança que quer andar no carrossel. Carlos seguiu Lara enquanto ela passava por baixo de uma torre muito antiga e chegava a uma rua de pedestres. Apesar da hora, as lojas de souvenir estavam abertas, e os restaurantes exalavam um adorável aroma de carne assada com algum tempero que Carlos não conseguiu identificar.
Depois de não mais que cinco minutos, a rua abriu-se em uma grande praça, em um formato próximo a um grande quadrado. Em três lados, várias casas coloridas se alinhavam, numa mistura de estilos que curiosamente combinavam. No lado sem casas, via-se um edifício maior, com uma torre alta.
- Que horas são? – Lara perguntou um tanto aflita.
- Hã.. quase nove – Carlos olhava o relógio de pulso.
- Então corre! – Lara disparou em direção à torre alta do outro lado da praça. Carlos foi atrás, sem entender bem o que estava acontecendo.
Lara parou junto a uma pequena multidão ao lado da torre. Todos olhavam para cima.
Carlos chegou ofegante e, antes que pudesse dizer algo, ouviu o som de um sino. Olhou para cima e, na face da torre de pedra, viu o mostrador dourado de um relógio antigo. Várias estátuas que o ladeavam começaram a se mexer. No alto, duas janelinhas azuis se abriram, e outras estátuas passaram por elas.
- O relógio astronômico! – Carlos deixou o queixo cair, lembrando das imagens que tinha visto no segundo ou terceiro capítulo da novela, e que agora estavam bem ali na sua frente. O pequeno show não durou mais que um minuto e, quando acabou, Lara olhou para ele e disse:
- Vem, temos que tomar uma cerveja.
Lara havia feito uma extensa pesquisa antes da viagem. Como líder do grupo de dois, queria ter certeza de aproveitar a viagem ao máximo, fazendo as coisas certas nos lugares certos. E desde os primeiros estudos ela viu que a cerveja era um assunto importante - e delicioso. Pesquisou os bares que os tchecos frequentavam, analisou as recomendações e fez uma lista de opções próximas ao hotel. E agora estavam os dois sentados em bancos sem encosto, compartilhando um mesão de madeira com um senhor de face extremamente vermelha, que poderia estar ali já há algum tempo.
- Bom, chegamos! Praga! E quais são os planos para amanhã? – Carlos perguntou antes de dar uma bicada na caneca de cerveja.
Lara tinha proposto uma viagem aberta. Sem roteiros, sem planos. Decidiriam o que fazer no dia anterior, de acordo com o humor e a vontade do dois no momento. Carlos aceitou, como aceitava quase tudo que Lara propunha.
- Amanhã podíamos ir ao Castelo – disse Lara – e depois descemos andando até Malá Strana.
Pelo pouco quem tinha se informado, Carlos sabia que o Castelo era a principal atração da cidade. E que Malá Strana estava perto. E, em última análise, ele não tinha nenhuma outra ideia melhor. Só restava concordar.
- Ok, Castelo então – Carlos ergueu sua caneca – E um brinde ao primeiro capítulo da nossa novela.
Lara tocou a caneca de Carlos e sorveu um gole da cerveja, ficando com um adorável bigodinho de espuma.
Carlos e Lara estão dentro do metrô. É o segundo dia de viagem, e os dois embarcaram na Praça da República, que ficava bem ao lado do hotel, com destino a Estação Central.
- Lá da Central sai um ônibus que vai direto até o Castelo – Lara explica o plano para Carlos – Precisamos sair do metrô e encontrar o ponto do ônibus.
- E tem alguma ideia de como se diz ‘ponto de ônibus’ em tcheco? – Carlos estava verdadeiramente curioso.
- Não, mas nem precisa. Basta perguntar sobre o ônibus para o Castelo. Não deve ser difícil.
A porta do vagão abriu e os dois ganharam a plataforma lotada. Era uma segunda-feira, hora do rush matinal. Com algum esforço, conseguiram chegar no saguão principal e sua impressionante cúpula. Mas nenhum sinal de algo que pudesse ser um ponto de ônibus.
- Deve ser lá fora – disse Lara.
- Ok, mas onde é a saída? – Carlos parecia confuso.
Lara olhou ao redor e comentou, um pouco irônica.
- Lembra da palavra útil da qual te falei no aeroporto? Olha ela ali. – Lara apontou uma placa sobre uma porta – Eu vou lá dar uma olhada, você me espera aqui.
Carlos sentou-se em um banco e esperou. Distraiu-se com a arquitetura da estação, suas colunas e sua decoração. De repente, percebeu algo estranho...
A porta por onde Lara passara... Ela tinha uma placa com a palavra ‘vchod’. Mas Carlos lembrava que a placa do aeroporto tinha um Y em algum lugar. E essa não tinha. Olhou ao redor, procurando, e viu outra porta, do lado oposto do saguão. Essa tinha os dizeres idênticos ao do aeroporto: ‘východ’.
Carlos então entendeu.
- Se východ quer dizer ‘saída’.... Então vchod quer dizer... ‘entrada’! Caramba, a Lara foi na porta errada!
Carlos saiu correndo em direção à porta com a placa sem o Y.
Alguns minutos antes, Lara cruzou a porta da placa sem o Y. E ficou feliz ao ver um ônibus estacionado junto a uma plataforma. Os passageiros embarcavam no instante em que se aproximou. Com seu inglês claudicante, tentou perguntar ao motorista, que estava em pé ao lado da porta, se aquele ônibus ia para o Castelo.
- Is this bus going to castle?
Aparentemente, o inglês do motorista claudicava ainda mais que o dela.
- Yes, bus to castle.
Lara não sentiu firmeza e insistiu.
- The big castle? The King Charles castle?
- Yes, bus to castle – o motorista repetiu.
A esta altura, todos os passageiros já haviam embarcado, e o motorista era a único alma restante na plataforma. Lara resolveu entrar e ver se alguém conseguia confirmar a informação truncada. Era um ônibus grande, de dois andares, e a parte de baixo estava fechada. Precisou se esgueirar na escada estreita para chegar ao andar de cima.
Assim que subiu, procurou identificar alguém que parecesse ser proficiente em inglês. Escolheu uma senhora gorduchinha na terceira fileira e repetiu a pergunta:
- Is this bus going to castle?
- Castles, actually: Karlštejn, Křivoklát and Loket – a gorduchinha respondeu.
Lara percebeu que tinha pegado, literalmente, o ônibus errado. Mas, antes que pudesse reagir, sentiu um tranco. O ônibus estava começando a andar! Lara desceu a escadinha correndo, mas a porta já estava fechada, e não havia comunicação com a cabine do motorista.
Lara fez menção de bater no vidro. Mas se deteve quando olhou para fora e viu Carlos irrompendo pela porta da placa sem o Y, aflito. Seus olhares se cruzaram por um instante. E o ônibus virou a esquina.
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Capítulo 2 - Pětilistá růže (Rosa de 5 pétalas)
Viva sua novela na República Tcheca
O primeiro capítulo se passa em Praga, capital da República Tcheca, e traz diversas atrações da cidade como cenário da história. Acesse o backstage e conheça um pouco mais de cada uma delas, e tenha acesso a conteúdos extras sobre os locais.