Praga pelas mãos de Petr Ginz, ou as memórias de uma vítima do holocausto
A imagem que ilustra esse post é um dos cartazes de peça teatral baseada nas memórias de Petr Ginz, eternizadas em um diário. Muitos comparam Petr a Anne Frank. Através das suas escritas, esse jovem nos leva a visitar o passado e sugere um roteiro por recantos de Praga que trazem lembranças de fatos que não podemos esquecer, para evitar que se repitam.
Por: Pepa Garcia
Publicado: Julho 19, 2022
Viajar ao passado pode ter seus prós e contras. Retornar à Praga de 1941 faz reviver a saga de milhões de pessoas que em diferentes partes do mundo enfrentaram momentos dos mais sombrios. Aspectos dessa época nefasta são mostrados na peça “Praga, 1941. Jovens louros não param de gritar na frente da minha casa”. Trata-se da adaptação teatral de “Os Diários de Praga, 1941-42”, livro de memórias escrito na forma de diário pelo jovem Petr Ginz, por muitos comparado a Anne Frank. Uma das vítimas do Holocausto, Ginz deixou seus pensamentos, reflexões e sonhos imortalizados nas páginas do seu diário.
Os irmãos Eva e Petr Ginz.
Quem foi Petr Ginz
O autor de “Os Diários de Praga, 1941-42” era um menino sensível e talentoso. Nascido em 1928, foi dessas pessoas inquietas e versáteis com tino para escrever seja um diário, um romance ou esboçar um desenho. Em 1941, Petr Ginz tinha apenas treze anos e, nem remotamente, podia adivinhar o que o esperava – as decorrências da ocupação nazista ocorrida na noite de 14 para 15 de março de 1939, a qual estabeleceu o Protetorado da Boêmia e Morávia, território da atual República Tcheca (exceto a região dos Sudetos, entregue ao Terceiro Reich cumprindo o Tratado de Munique).
As consequências da invasão alemã foram imediatas. A sistemática perseguição e aniquilação, principalmente de judeus, vitimou, no balanço global, mais de seis milhões de pessoas (um milhão delas, crianças). O genocídio começou ao final do verão e início do outono de 1941. Um ano depois, atingiu o auge. Esse é o período que Petr Ginz reporta em seu diário.
Petr e Eva Ginz, imagem de álbum de família.
Uma família judia em Praga
O nascimento de Petr Ginz em família judaico-cristã determinou seu futuro. Seu pai era judeu, sua mãe, não. Ele tinha apenas uma irmã, Eva. Ambos cresceram rodeados de cultura, instalados numa vida confortável e num ambiente agradável que os fez evoluir livremente. Com apenas 11 anos, Petr terminou sua obra literária “Visita da Pré-história” - romance de aventuras no estilo de Júlio Verne. Dois anos depois, em 1941, essa narrativa deu lugar à explanação da sua realidade, do seu dia a dia, registrada em um diário. Nele, Petr Ginz registra testemunhos da situação política, os cortes nos direitos dos judeus (ele foi obrigado a deixar de ir à escola com alunos não judeus), a expulsão dos seus amigos da cidade e o transporte em trens para lugares desconhecidos.
Ao completar 14 anos de idade, Petr foi forçado a deixar Praga. Chegou ao gueto de Terezín em outubro de 1942, no Lar de Crianças 1, que estava sob a direção pedagógica de um professor de Brno, Valter Eisinge. Durante os dois anos que lá permaneceu a sua mente permaneceu ativa – ele não parou de criar. Escreveu inúmeros poemas, vários romances e até criou a revista Vedem e nela publicou seus pensamentos, histórias do gueto e, às vezes, poemas. Ele começou a se interessar por assuntos filosóficos, ciência e até budismo. Mesmo sendo tão jovem, organizava conferências clandestinas com outros convidados, para expor temas de seu interesse.
Sua irmã Eva chegou a Terezín em maio de 1944, quase dois anos depois. No entanto, eles ficaram juntos apenas até setembro do mesmo ano, quando Petr e seu primo Pavel foram enviados em um misterioso "transporte para o Oriente". O destino final foi Auschwitz-Birkenau. Seu estado de saúde naquela época era delicado e quando foi examinado no campo de concentração foi enviado diretamente para a câmara de gás. Petr Ginz tinha apenas 16 anos. Seus pais e irmã sobreviveram.
Cartaz da peça "Praga 1941".
Um terrível acidente e um encontro casual
Continuamos com a história desse jovem judeu, mas damos um salto até 2002. Naquele ano, foi lançado o ônibus espacial Columbia, nave pilotada por um astronauta israelense, Ilan Ramon, que decidiu levar consigo uma referência ao Holocausto. O motivo escolhido foi um desenho que mostrava o planeta Terra visto desde a lua, cujo autor foi Petr Ginz.
Infelizmente, a nave explodiu em 2003 e entre as imagens exibidas na televisão apareceu o desenho de Petr. Seu estilo particular era familiar a um telespectador - Jiri Ruzicka. Este jovem havia encontrado desenhos semelhantes e um diário no sótão da casa onde morava, no bairro de Modrany, em Praga. A história não termina aí. O jovem, ajudado por associações judaicas, conseguiu localizar Eva, irmã de Petr, que havia emigrado para Israel e agora se chamava Chava Pressburgerová. A escrita, com algumas memórias e vários artigos de Eva, foi publicada em 2006 pela editora tcheca Trigon, sob título “O diário de meu irmão”. Essa triste e reveladora memória já foi traduzida em 14 idiomas. Por agora, não há edição em português. Em espanhol, foi publicada pela Editora Acantilado.
Hoje, algumas linhas do diário de Petr Ginz parecem ganhar vida - “Isso vai passar logo; Hitler está indo mal na Rússia. Mas isso que você ouve são os latidos de seus cachorros na frente de nossas casas, cantando seus hinos. Mamãe tem medo que a gente saia na rua e apanhe. A realidade mudou da noite para o dia - primeiro uma pequena restrição, depois outra... Há que estar alerta porque algo muito grande, muito triste ou muito selvagem pode acontecer bem debaixo dos seus narizes e vocês nem perceberão”.
Cena da peça "Praga 1941".
Do papel ao palco
O diário de Petr foi adaptado para teatro pelo dramaturgo espanhol Paco Gámez e está em exibição em Madri, Espanha, pela Companhia de Teatro LaJoven. Seguirá em cartaz durante 2022, em várias cidades daquele país. Embora a cada cena há apenas um ator no palco, ele interpreta vários personagens, por exemplo, o astronauta, o próprio Petr ou o jovem que encontrou o diário. Cada um compartilha suas impressões sobre o momento que vivenciou. Música, vozes e iluminação têm papel fundamental no cenário de “Praga, 1941. Jovens louros não param de gritar na frente da minha casa”.
Na peça, dois atores se revezam e interpretam vários personagens.
Praga pela mão de Petr Ginz
Em “Diários de Praga”, Petr Geinz narra sua rotina, encontros, anedotas, muitas vezes associadas aos locais onde os eventos aconteceram. Alguns deles estão a seguir, como sugestão para você visitar durante a sua próxima viagem a Praga, a belíssima capital da República Tcheca.
Catedral de San Vito
A Catedral de San Vito, situada nos interiores do complexo do Castelo de Praga, merece ser admirada por vários motivos - suas dimensões, seu impressionante estilo gótico, a duração da sua construção, que demandou para além de mil anos, mas, acima de todas as razões, há o fato de que este grande templo é o símbolo espiritual da Nação Tcheca e, como tal, é lembrado nos Diários de Praga.
“Domingo, 29 de março de 1942. Pela manhã, em casa. Os sinos não tocam porque os alemães os removeram todos, eles certamente os derreterão para fazer canhões. Só deixaram os sinos de Sigismundo, na catedral de São Vito, que é agora o único sino de Praga”.
Durante sua visita ao castelo, reserve um bom tempo para observar os interiores da Catedral, as Joias da Coroa guardadas na capela de São Venceslau, os túmulos de Carlos IV e de São João Nepomuceno. À tarde, as luzes que filtram pelos vitrais criam uma atmosfera mágica, tão surpreendente quanto as vistas da Torre Sul da Catedral.
Catedral de São Vito/©Prague Tourism.
Rio Moldava
Com 430 quilômetros, o rio Moldava (Vltava, em tcheco) é o mais longo da República Tcheca e, além de atravessar o país, também divide Praga em duas partes. Algo que poderia ser visto como um inconveniente, tornou-se realmente uma atração turística que permite desfrutar de pontes monumentais como a de Carlos, cenas bucólicas e inúmeros cruzeiros. Se você é amante de jazz, poderá até mesmo curtir o seu estilo musical em um dos barcos que navegam o rio ao pôr do sol. Se preferir algo mais ativo, alugue um pedalinho e navegue pelo Moldava no seu próprio ritmo. A título de curiosidade, contamos que até o compositor tcheco Bedrich Smetana dedicou poema sinfônico ao Moldava. Nos Diários de Praga esse rio é mencionado por Ginz várias vezes. Uma das menções está a seguir
“Tarde em Troja (n.t.: antiga vila de Praga, agora bairro, localizado à margem direita do Moldava, nas imediações do Zoológico de Praga). O Moldava está transbordando e apesar disso vi passar um barco carregado com cerca de trinta pessoas. Ainda está muito frio, mas o sol começa a brilhar”.
Moldava é o rio mais longo da República Tcheca/©Bedna Film-Turismo de Tchéquia.
Campo de concentração de Terezín
Foi construído como fortaleza pelo monarca José II, que deu ao campo o nome da mãe dele, a imperatriz Maria Teresa. No entanto, eventos históricos posteriores fizeram com que seu nome fosse gravado a fogo por funcionar primeiro como prisão e depois, na 2ª Guerra Mundial, como gueto e campo de concentração. Petr Ginz foi mantido ali por dois anos. A visita a Terezín e o respectivo Memorial dedicado às vítimas do Holocausto é imperdível para quem quer fazer a rota de Petr Ginz em Praga. Formado por um complexo de prédios, em Terezín você poderá ver os barracões, a capela e o Museu do Gueto. Ali você verá, inclusive, partes preservadas das criações de quem lutou contra a dor com arte e criatividade.
Vista aérea do Campo de Terezín/©Turismo de Tchéquia.
Troja, desejando uma vida tranquila
Outra área a que Petr alude em seu diário é Troja - “Troja? Troja! Ainda há barcos em Troja, uma vez o meu pai (…)”. As memórias do jovem o remetem para uma época em que a vida era tranquila naquele bairro situado às margens do rio Moldava. Embora não seja um dos lugares mais conhecidos de Praga, vale visitar o palácio barroco de Troja, o qual, dizem, foi construído para evocar a atmosfera de Roma e se acerca do Zoológico Municipal e Jardim Botânico, repleto de espécies exóticas.
Palácio de Troja durante a vindima de Santa Clara/©Turismo de Tchéquia.
Pôr do sol visto de Petřín
Entre os melhores lugares para ver o pôr do sol sobre Praga está a Colina Petřín, que tem um lindo mirante inspirado na Torre Eiffel parisiense. Esta é outra das visitas que lhe sugerimos incluir num tour pela Praga de Petr Ginz, já que ele até dedicou um poema a Petřín, durante a sua estadia em Terezín.
“Há quanto tempo / desde a última vez que vi / pôr do sol sobre Petřín / Faz quase um ano que estou neste buraco / com apenas algumas ruas em vez de suas avenidas. / Como um animal selvagem trancado em uma jaula.”
A lista de lugares que o jovem Petr Ginz menciona em seu diário é bem maior. Em artigos futuros, listaremos outros tantos.
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