Milan Kundera e a sua insustentável saudade de Praga

Em próprias palavras, quando Milan Kundera partiu para a França, em 1975, levou consigo o cheiro, o sabor, a língua, a cultura e as paisagens de Praga, cidade que  é pano de fundo para várias de suas obras, sempre acompanhadas por sucesso.

Por: Colaborador Convidado

Publicado: Maio 05, 2020

Há algum tempo, em entrevista ao jornal alemão Die Zeit, o escritor tcheco Milan Kundera, vivendo na França, declarou que "o sonho de retornar não existe; levei minha Praga comigo: o cheiro, o sabor, a língua, a paisagem, a cultura".  Tempos depois, em 2019, o retorno foi possível. Após 40 anos de a então Tchecoslováquia comunista ter retirado a sua cidadania, ele a recebe de volta, aos 90 anos de idade.

O escritor materializou o sabor, a paisagem, a cultura e mesmo o idioma da Praga que levou consigo através de várias obras criadas na França. A exemplo de “A Insustentável Leveza do Ser”, escrita (1983) em tcheco quando ele já vivia ali há oito anos, e dominava o idioma, professor que era na Universidade de Rennes. Sucesso mundial, o livro ganhou versão para as telas (1988), sob direção do norte-americano Jean-Claude Carrière Philip Kaufman, com  Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche nos papeis principais.

Muito provavelmente, Kundera não apreciou essa experiência. Após o filme, ele não mais autorizou adaptação cinematográfica dos seus romances. A época é marcada por outras negativas do escritor -  ele passa a escrever em francês; e atribui a si, e somente a si, a tradução das suas obras para o tcheco.

O sucesso continuou a persegui-lo. Por sua vez, ele continuou avesso à mídia, insondável, reservado, contudo, concordou em colaborar com o autor  francês Jean-Dominique Brierre, que escreveu “Milan Kundera, uma Vida de Escritor” (Editora Écriture). Em um dos trechos do livro, Bierre questiona qual a atribuição que o escritor dá ao sucesso obtido. “Ao fato de ser incompreendido”, responde Kundera.

Museu da Morávia, em Brno, cidade natal de Kundera, promoveu ampla homenagem ao escritor por ocasião do seu 90º aniversário, em 2019.

É provável que essa frase do escritor esteja oculta nos seus sentimentos a partir do imbroglio em que se viu envolvido desde que deixou Brno, a sua cidade natal, e foi viver em Praga - a primeira expulsão (1950) como membro do Partido Comunista, que denominava a então Tchecoslováquia; depois, a  readmissão, em 1956; o seu envolvimento com a Primavera de Praga (1968); e a nova expulsão do Partido (1970).

É essa jornada intelectual, política e literária que Bierre reconstitui em sua obra, com base nos escritos, entrevistas e testemunhos inéditos, em particular, dos amigos próximos do escritor – Alain Finkelkraut, filósofo, membro da Academia Francesa; François Kérel, seu tradutor durante anos.

A reconstituição de Bierre é inserida no contexto histórico transcorrido desde o “Golpe de Praga” (1948) à “Revolução de Veludo” – que eclodiu a partir de repressão à manifestação pacífica de estudantes praguenses, e pacificamente estendeu-se pelo país, resultando na derrocada do governo comunista na antiga Tchecoslováquia.

Em outro trecho da conversa com Brierre, Kundera diz que a sua  vida “é uma jornada, cujas fases sucessivas não são apenas diferentes, mas frequentemente representam a negação total das fases anteriores”. A frase reflete conflitos vivenciados ao longo de décadas, antes mesmo de perder a sua cidadania de nascimento.

Kundera perdeu a cidadania tchecoslovaca em 1979, quando, já na França, publicou no jornal Le Nouvel Observateur alguns trechos de “O Livro do Esquecimento” e, a seguir, concedeu ao Le Monde entrevista que irritou o sistema dominante no país à época.

Na França (recebeu a cidadania francesa em 1980), inicialmente Kundera escreveu “O Livro do Riso e do Esquecimento” (1979), o qual, conforme percebido depois, daria o tom às suas futuras obras. Ironia, fantasia, emoção e romance se entrelaçam na obra, em narrativa que lança olhar agudo sobre o cotidiano do seu país após a invasão russa, em 1968. O pano de fundo é a Primavera de Praga (no Brasil, Companhia das Letras, 2008).

Assim como na antiga Tchecoslováquia, aos 91 anos (2020) Kundera continua a mostrar-se paradoxal e recluso – da sociedade e da mídia, e a tocar a vida ao som das escritas. Sua produção de romances na França, além dos já citados, inclui “A Imortalidade”, lançado em 1990. É um romance em sete partes, que intercala as histórias de Agnes, seu marido Paul e sua irmã Laura, com  narrativa retirada da história literária que conta a relação de Goethe e Bettina von Arnim (no Brasil, Editora das Letras, 2015). Para aperitivo, leia grátis trecho desta obra.

Outros trechos de livros de Milan Kundera para ler grátis

O Livro do Riso e do Esquecimento

A Festa da Insignificância (apresentação)

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