Recantos literários de Praga, a capital mundial do livro
Além de suas majestosas bibliotecas, a capital tcheca -declarada Cidade Literária em 2015 pela UNESCO- respira literatura por uma série de recantos tão inesperados quanto uma instalação artística que representa o horizonte ilimitado da leitura. Ou um curioso edifício em forma de estrela que fascinou André Breton, entre muitos outros lugares que, neste artigo, convidamos você a visitar.
Por: Eduardo Grund
Publicado: Fevereiro 14, 2022
Apesar de somente em dezembro de 201 a UNESCO ter lhe dado o título oficial de Cidade Literária, Praga é uma cidade que sempre esteve intimamente ligada aos livros. Não só porque é a cidade natal de Franz Kafka, um dos escritores mais importantes da literatura mundial, mas também porque há inúmeros autores estrangeiros de renome (Albert Camus, Jorge Luis Borges e Gabriel García Márquez, entre muitos outros) que se renderam aos seus encantos e tentaram colocá-los por escrito. E embora Praga tenha lugares tão magistrais como Klementinum ou Strahov, nesta ocasião quisemos mostrar alguns recantos da cidade que, sem serem propriamente bibliotecas, têm uma relação muito profunda e vital com os livros. Ruas, bares, restaurantes, esculturas e outros edifícios que, talvez, à primeira vista, não pareçam remeter a nenhum texto, mas que, ao serem descobertos, permitem descobrir uma parte essencial da capital tcheca e, ao mesmo tempo, experimentar algo muito semelhante à inspiração literária.
Monumento ao livro em Praga
1. Monumento ao livro na Biblioteca Municipal
Feito pelo artista eslovaco Matej Krén em 1998, este atrativo monumento ao livro, ou melhor, à ideia de infinito que as leituras representam, está localizado no hall de entrada da Biblioteca Municipal de Praga. Sob o título de Idiom, é uma impressionante torre composta por vinte mil volumes que, graças a um sistema de espelhos simples mas eficaz, gera a sensação, ao olhar para fora, de que a pilha de livros não tem fundo. Além de ser uma carta de apresentação perfeita para a sede de uma rede muito extensa de bibliotecas que chega a quase todos os bairros, esta instalação de arte hipnótica é um dos lugares de Praga que tendem a despertar muitas reações no Instagram.
2. Mural em homenagem a Hrabal
Ao que parece, foi seu amigo Karel Marysko quem convenceu o grande escritor tcheco Bohumil Hrabal a se mudar para a capital tcheca, depois de lhe perguntar quando planejava deixar a pequena cidade onde o tempo havia parado, em referência à sua cidade natal, Nymburk. Hrabal se mudou, mas dedicou à pequena cidade, entre outras obras, o livro de memória Postřižiny (Cortes). E embora esta cidade, a menos de cinquenta quilômetros da capital tcheca, seja quase sinônimo de Hrabal, (a cervejaria que hoje está na casa em que residia produz uma cerveja chamada Postřižiny), a verdade é que o autor de Uma solidão muito barulhenta também é lembrado na área de Praga-Libeň.
A casa onde o escritor morava, na rua Na Hrázi, foi demolida. Porém, foi pintado um belo mural no local exato onde estava localizado, lembrando este autor, cuja adaptação cinematográfica de Trens Cuidadosamente Vigiados, dirigido por Jiří Menzel, ganhou um Oscar por melhor filme estrangeiro. Nesta homenagem colorida você pode ver Bohumil Hrabal, sua inevitável máquina de escrever e, claro, uma de suas grandes paixões: os gatos.
3. Cafeteria Tynska Kavarna
Atrás de uma porta quase secreta, que um desavisado não notaria, está este café e bar literário, localizado a uma curva do antigo mercado Ungelt e em frente ao Museu da Cidade de Praga. Com várias salas com tetos abobadados e uma curiosa atmosfera de cave, o toque mágico deste local, onde só os frequentadores de longa data parecem ir, é dado pela enorme quantidade de livros disponíveis para acompanhar uma cerveja tcheca, um bom café e o típico queijo hermelín. Embora os livros também sejam vendidos ao modesto preço de vinte coroas.
4. Livraria Shakespeare na synové
Com vinte anos de reinado na ilha de Kampa, alguns comparam esta livraria com a mítica Shakespeare and Company em Paris, que apareceu em inúmeros filmes. No entanto, este local especializado em textos em inglês e trabalhos sobre a história tcheca em todas as suas dimensões tem sua própria personalidade. Em primeiro lugar, porque oferece longas horas de leitura gratuita em suas confortáveis poltronas. Além de ter quase qualquer livro que já se publicou sobre a cidade de Praga, esse verdadeiro clássico das livrarias também tem um setor bem completo de quadrinhos e graphic novels.
5. Palacete da estrela
Sem dúvida, o principal interesse desta verdadeira joia renascentista que Fernando I de Habsburgo mandou construir tem a ver com a arquitetura e a história. Uma majestosa residência de verão em forma de estrela, tetos decorados com estuque e abundantes referências mitológicas, que abriga também uma reprodução em escala da emblemática Batalha da Montanha Branca em seu subsolo. No entanto, este edifício também tem uma ligação indiscutível com a literatura. Não só porque, atualmente, é administrado pelo Museu de Literatura Nacional (Památník národního písemnictví), mas também porque aparece no livro O Amor Louco de André Breton. E não é pouca coisa dizer que, durante sua visita à capital tcheca em 1935, o pai do surrealismo ficou absolutamente maravilhado com essa construção. De fato, desde 2005, uma pedra gravada com essa informação pode ser vista na porta.
6. Restaurante U Kalicha (do Cálice)
Em As Aventuras do Bom Soldado Švejk, livro tão emblemático da literatura tcheca que muitas vezes é comparado a Dom Quixote, Švejk, o herói à sua maneira, diz o seguinte: “Venha me ver depois da guerra. Você vai me encontrar todas as noites a partir das seis na Taverna do Cálice, na rua Na Bojišti.” Embora, é claro, o tempo tenha transformado aquela cantina decadente na qual, segundo Švejk, sempre acontecia alguma coisa, em uma das tavernas tchecas mais populares da atualidade, onde nunca falta joelho de porco, knedlíky, muito menos cerveja, este restaurante pode gabar-se de ser, pelo menos em termos geográficos, aquele apresentado na obra-prima de Hašek.
E além de ter uma enorme sala para mais de cem comensais, parte da magia deste clássico da gastronomia tcheca está em seu cenário que inclui desde um boneco em tamanho real do próprio Švejk, até paredes repletas de grafites e assinaturas famosas.
7. Sebo da Rua Dělnická em Holešovice
Praga é um paraíso mesmo para os teimosos que procuram livros usados: apesar do surgimento de novas tecnologias, várias livrarias de segunda mão ainda sobrevivem por toda a cidade. No entanto, quem mais se destaca nesta categoria é um lugar que ocupa um enorme espaço no meio da rua Dělnická, no charmoso bairro de Holešovice. O local não se caracteriza propriamente pelo seu asseio ou limpeza pois, ao entrarmos, somos recebidos por uma série de monstruosas pilhas de livros que parecem ter sobrevivido a uma explosão ou a um terremoto. No entanto, este negócio dirigido por um ex-policial tem –além de quase cem mil exemplares– sua mística própria e, entre essas quatro paredes abarrotadas de livros onde nem um alfinete parece caber, os leitores mais exigentes podem encontrar aquelas obras que , de tanto procurá-las, parece que não existem.
8. Rua das Sombras (Ve Stínadlech ulice)
Em 2007, a prefeitura de Praga decidiu batizar uma passagem sem nome, não muito longe do centro, como Rua das Sombras, em homenagem a obra As Flechas Rápidas (Rychlé šípy), famosa trilogia de aventuras juvenis escrita por Jaroslav Foglar que, por sua vez, tornou famosa, na realidade, um objeto fictício: o ouriço na gaiola, um jogo de engenhosidade graças ao qual os protagonistas conseguiram acessar a fórmula secreta da bicicleta voadora. A rua das sombras consiste em um grande muro onde fãs de várias gerações inscrevem citações e desenhos sobre esses romances. Há também um altar onde se homenageia o ouriço na gaiola. Um fato curioso é que a placa de rua costuma ser “emprestada” pelos leitores mais fervorosos e, de tempos em tempos, a cidade precisa substituí-la.
9. Beco Dourado no Castelo de Praga
O Beco Dourado é um dos lugares mais bonitos e visitados de Praga: suas casinhas pitorescas e a atmosfera marcante daquela viela estreita que, segundo a lenda, abrigou os alquimistas de Rodolfo II, fazem dele um lugar único. No entanto, existem várias razões pelas quais o beco não pode faltar nesta nossa lista. O mais óbvio é que, no número 22, Franz Kafka passou algum tempo junto com Ottla, sua irmã favorita. Quando o escritor irlandês John Banville visitou este lugar pela primeira vez, ele não podia acreditar como Kafka e sua irmã não se desentenderam irreconciliavelmente com a falta de espaço. No entanto, não só eles se deram bem, como Kafka também escreveu a história Um médico do campo nesta casinha.
Além disso, nesta rua morou também o poeta Jaroslav Seifert, até agora o único tcheco ganhador do Prêmio Nobel de Literatura que, em seu livro, Toda a Beleza do Mundo, conta uma série de casos fascinantes (alguns até sobrenaturais) sobre esta pequena rua. E, por fim, a terceira grande razão que explica o caráter livresco deste lugar mágico do Castelo de Praga é que, na parede cinzenta que ainda hoje pode ser vista no final da rua, o escritor Gustav Meyrink localizou a mítica casa com o último poste de luz, uma casa que só podia ser vista por certas pessoas, em alguns dias de neblina.